Fetch the bolt cutters: o novo disco de Fiona Apple é uma obra monumental e inigualável
Há duas semanas, quando Fiona Apple anunciou a antecipação do lançamento de seu aguardado quinto álbum, o frisson foi enorme. Ansiosa com a perspectiva de ter que fazer a divulgação do disco (aguardado há oito longos anos pelos fãs), a reclusa artista enxergou uma oportunidade de não ser obrigada a fazer uma promoção tradicional (shows, mídia, etc.), pelo menos nesse primeiro momento. No que se refere à isolamento social, Fiona é expert. Vive há muito tempo longe dos holofotes em sua mansão em Los Angeles, na companhia de seus amados cachorros.
Com apenas 5 discos em quase 25 anos de carreira, Fiona se especializou em cultivar o mistério acerca de seus planos. Ela é instável, temperamental, brilhante. Fetch the bolt cutters é exatamente o que se esperava dela: passional e autêntica como sempre, crua e intimista como no quarto álbum (The idler wheel…), a artista nos carrega numa viagem sonora por uma mente que não tem medo de se expor, e que usa toda a sua criatividade para expurgar seus demônios e, por meio da música, encorajar a libertação e a transcendência. Ela se conecta não somente com nossos ouvidos, mas com a nossa alma.
As melodias tortuosas de Fiona se alternam entre trechos em que ela despeja as palavras com fúria (quase como um rap) e passagens cândidas e reconfortantes, numa montanha russa sonora inebriante. A beleza se apresenta em doses sutis, no meio do caos. Não é música para ser ouvida casualmente, nem pra relaxar ou pra se entreter. Por isso mesmo, a degustação de Fetch the bolt cutters deve ser feita no mesmo ritmo em que o disco foi construído, sem pressa.
Foram oito anos em que ela teve tempo de testar todos seus impulsos criativos, sem pressões, de forma espontânea, gravando em sua casa. Arte em sua forma mais pura, sem propósitos comerciais. As treze faixas estão impregnadas do ambiente caseiro, com sons de ecos, passos, murmúrios, cachorros latindo, utensílios sendo manuseados. Ao final de várias músicas, a impressão é que ela deixou o microfone ligado para que testemunhemos os sons cotidianos. É um diário dos estados de espírito da artista, e é fascinante se imaginar como foi o dia-a-dia das gravações. Será que ela gravava ruídos aleatoriamente para testar depois? Ou com um propósito definido, para ser encaixado em uma canção específica? Não sei se teremos essa resposta algum dia, mas o fato é que a curiosidade instiga ainda mais a apreciação da obra.
A base sonora do álbum é a percussão frenética e intensa, que faz uso de uma diversidade enorme de instrumentos. Camadas vocais sobrepostas em arranjos primorosos são a cereja do bolo, e o piano de Fiona está menos presente do que de costume – mas quando resolve se destacar o resultado é sublime.
Foto via vulture.com
O álbum já começa de forma bombástica com “I want you to love me”, uma declaração de intenções feroz, ansiosa e vulnerável. A ênfase prolongada no “you” é de arrepiar, e evidencia mais uma vez que Fiona usa sua voz como ninguém. “Shaneika” relembra os anos escolares e o bullying que sofreu: “Eu não sorria / pois um sorriso sempre iria parecer forçado”. Em “Newspaper”, Fiona mostra empatia com uma mulher com a qual dividiu o mesmo homem, e que também sofreu nas mãos dele. Mais violenta ainda no quesito masculinidade tóxica, “For her” começa no estilo das girl bands e muda abruptamente de ritmo pra despejar solenemente: “A cama em que você me estuprou hoje/ É a mesma em que sua filha nasceu”. Sem floreios, de forma direta e poética, ela consegue tocar em assuntos relevantes e ainda assim não parecer panfletária.
A faixa título tem participação especial dos cachorros (eles são incluídos nos créditos do álbum!), e a respiração ofegante de Fiona no trecho final é de causar arrepios. Dá pra imaginar ela em casa se consumindo pelo sofrimento (“Eu já estou aqui por muito tempo”) e fazendo um balanço da sua vida, um tipo de simulação de um reality show bizarro – e, ao mesmo tempo, fascinante. A erupção criativa jorra detalhes pra todo lado, sem parecer exagerada ou autoindulgente. “Ladies” (talvez a música que mais se aproxime um pouco de algo convencional) tem um baixo funkeado arrebatador e uma ironia fina na letra – em que ela se dirige à nova namorada do seu ex. “Cosmonauts”, por sua vez, reflete sobre a finitude dos relacionamentos: “Você e eu seremos como um par de cosmonautas/ Só que com mais gravidade do que começamos”.
A música que parece resumir melhor o espírito do álbum é “Under the table”, em que a cantora brinca com seu jeito “super sincero” ao recordar um jantar com os amigos do companheiro: “Me chute por baixo da mesa à vontade/ Não vou me calar!” Ela ficou oito anos reclusa, e, para nossa sorte, preparou 50 minutos da mais pura e bela expressão artística para fazer história – e para nos deliciarmos por muito tempo. Um disco que pulsa com vida, energia e sinceridade e não se parece com nada já feito na história da música. Fiona não pode e não vai se calar. Precisamos dela mais do que ela precisa da gente…