Álbuns clássicos: Bikini Kill – Pussy whipped (1993)

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O movimento Riot Grrrl foi um importante marco do feminismo de terceira geração centrado na região americana do Pacífico Noroeste, e usava o punk rock como uma de suas principais formas de expressão. Bandas como Bikini Kill, Bratmobile, Huggy Bear, Skinned Teen e Sleater-Kinney foram algumas das pioneiras, abrindo mais espaço de discussão de temas da agenda feminista – como estupro, abuso doméstico e dominação masculina – na música e na sociedade.

Alinhadas com a cultura do “Faça você mesmo”, as bandas não se preocupavam com questões técnicas ou preciosismo na produção, adotando um estilo sujo e de garagem e criando um espaço alternativo de divulgação de suas idéias.

A grande liderança informal do movimento foi Kathleen Hanna, fundadora do Bikini Kill. Líder nata, carismática e articulada, Hanna expressava suas convicções de forma contundente. Ela incintava as mulheres a se unirem, despertando a comunalidade e a agregação feminina como forma de luta. Os shows do Bikini Kill eram eventos políticos, espaços para discursos e discussão sobre temas feministas. Além disso, Hanna frequentemente pulava do palco para organizar a platéia e abrir espaço para as mulheres ficarem nas primeiras fileiras.

A intensidade de Hanna no aspecto político e um certo viés panfletário muitas vezes ofuscaram a dimensão artística de sua banda. Na verdade, grande parte da visibilidade obtida pelo movimento Riot grrrl se deve à qualidade e honestidade das músicas do Bikini Kill, que Hanna formou em Olympia, Washington, e que tinha ainda como membros Billy Harren (guitarra), Kathi Wilcox (baixo) e Tobi Vail (bateria).

A banda realizou diversas gravações independentes e amadoras no início da década de 1990, conseguindo gravar o primeiro disco, Pussy Whipped, somente em 1993.

pussy whipped

Uma obra-prima punk de menos de 25 minutos, o álbum impressiona pela intensidade, agressividade e letras inflamadas dirigidas ao público feminino. Um senso de urgência perpassa todo o disco, como se a revolução tivesse que acontecer imediatamente.

Fundindo a fúria punk com elementos do hardcore (uma versão acelerada do punk) e do pós-punk (como o baixo em destaque), o Bikini Kill criou um coquetel explosivo, detonado pelos vocais insanos e pelos gritos impressionantes de Hanna. As primeiras cinco músicas são pauladas na cabeça do ouvinte, num dos inícios mais raivosos da história do rock. “Alien me” trata das imposições que a sociedade faz às mulheres e da dificuldade de se encontrar o seu verdadeiro “eu”: “Ela quer que eu vá ao shopping/Ela quer que eu ponha meu lindo batom vermelho/Ela quer que eu seja como ela”.

Esses versos de “Lil´red” resumem bem a mensagem de Hanna: “Essas são as minhas tetas, sim/E essa é a minha bunda/E essas são as minhas pernas/Olhe enquanto elas vão embora”. Cabe destacar que Hanna sempre deixou claro que o movimento era pró-mulheres e não antimasculino. Os alvos não eram todos os homens, somente aqueles contaminados pela cultural patriarcal e machista.

Em “Sugar”, o ritmo fica um pouco mais cadenciado, se assemelhando muito da sonoridade do Nirvana (Hanna namorou Dave Grohl e era amiga de Kurt Cobain). “Star bellied boy” retoma o modo visceral e se dirige diretamente aos homens e suas mentiras, enquanto em “Hamster baby” o destaque é o riff infectante.

A melhor e mais importante música do disco é “Rebel girl”, que se tornou o hino do movimento Riot Grrrl. É a música mais palatável da coleção, um punk rock simples e grudento com uma letra genial, que discorre sobre o poder feminino e a importância da irmandade e da união das mulheres.

“Star fish” conquista pela guitarra melódica e límpida, enquanto a última música (“For Tammy Rae”) se diferencia pelos vocais contidos (bem baixos no mix), pelo baixo melódico, melodia cativante e letra homossexual (Eu sei que está frio lá fora/Mas quando estamos juntas eu não tenho nada a esconder/Segure firme, não vou te deixar cair/Não vai chover no seu lado da cidade”. Ao estilo indie rock, a banda mostrava que tinha talento para alternar seu modo de ataque com outras cadências e apelos.

Ao retornar da turnê de divulgação do disco na Europa, Hanna uniu forças com seu ídolo Joan Jett, que produziu o single “New radio/Rebel Girl”. “New radio” complementava o manifesto de “Rebel girl”, antevendo uma nova era: “Os buracos nos dentes/As unhas sujas/Garoto, você não pode matar o que é tão real/Abaixe aquela música/Aumente a eletricidade”.

A visibilidade do movimento Riot Grrrl na mídia aumentou, mas poucos entendiam seus reais propósitos e essa distorção irritou Hanna, que clamou por um boicote aos meios de comunicação. O ativismo de Hanna continuou forte nos anos seguintes, e o Bikini Kill gravou outro ótimo disco em 1996. A banda se separou nesse mesmo ano. Hanna fez discos solo e formou outra banda, Le tigre, que durou de 1998 a 2001. Em 2019, surpreenderam a todos com um anúncio de uma turnê de retorno, cujos ingressos se esgotaram rapidamente.

bikini-kill via rolling stone

Kathleen Hanna em 2019 – Foto via Rolling Stone

Infelizmente, a revolução ocorre num ritmo mais lento do que o desejado pelo Bikini Kill, mas o fato é que a música autêntica e antêmica que elas criaram ainda ressoa por vários quartos de garotas no mundo inteiro, munindo-as de força e mostrando que é possível (e preciso) lutar.

Não dá pra ficar impassível diante das palavras de luta clássicas que se eternizaram nas letras de Hanna: “Isso significa que meu corpo precisa ser sempre fonte de dor?”. Ou ainda: “Eu acredito nas possibilidades radicais do prazer.” E a melhor de todas: “Aquela garota pensa que é a rainha de vizinhança/ Tenho uma notícia pra você: ela é!”

Esse texto foi originalmente publicado no meu livro “Rock feminino”, que trás resenhas de grandes álbuns de rock feitos por mulheres. Disponível para compra em:

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Daniel Rezende

Daniel Carvalho de Rezende é professor da área de Comportamento do Consumidor na Universidade Federal de Lavras (Minas Gerais). Desenvolve pesquisas sobre consumo cultural no âmbito dos cursos de mestrado e doutorado em administração. Entre os artigos científicos que já publicou sobre o tema, destacam-se: “As expressões do girl power na série Game of thrones”, “Consumo e distinção social no campo cultural da música: um estudo em Minas Gerais” e “'Pra nós, todo o amor do mundo': formação de identidade e consumo musical dos fãs da banda Los Hermanos”. Apaixonado por rock, já escreveu dois livros que abordam essa temática: Rock alternativo: 50 álbuns essenciais, publicado em 2018, e Rock Feminino, lançado em 2019.

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