Álbuns clássicos: The Runaways (1976)

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De tempos em tempos, o mundo pop resgata artistas obscuros do passado e os transforma em objetos de culto. Um grande exemplo desse fenômeno é a banda The Runaways, uma das pioneiras do hard rock feminino nos anos 1970. O quinteto inteiramente feminino foi ridicularizado ou desprezado pela maioria durante os seus breves anos de atividade (1975-1979), sendo apontado como uma farsa comercial. No entanto, com o sucesso de algumas de suas integrantes em carreira solo, elas aos poucos foram sendo redescobertas, o que culminou com uma cinebiografia hollywoodiana em 2010 que as alçou ao posto de um dos grandes tesouros perdidos do rock.

Uma figura chave na criação e desenvolvimento da banda (para o bem e para o mal) foi o produtor Kim Fowley, que  apresentou a talentosa guitarrista Joan Jett à baterista Sandy West, conduziu a seleção do restante do grupo e assumiu as rédeas nos contatos com o mundo do show business. Além disso, ele compunha grande parte das músicas em parceria com Jett. Uma delas, “Cherry bomb”, foi escrita pelos dois durante a audição da vocalista Cherie Currie, inspirada pelo sex appeal explosivo da moça. Lita Ford na guitarra solo e Jackie Fox no baixo completaram o line up para gravação do primeiro disco, em 1976. Um detalhe impressionante é o fato de que todas eram adolescentes na época da gravação do álbum, sendo que a mais velha (Lita) tinha somente 17 anos!

The Runaways tinha 10 faixas, sendo uma delas uma cover de “Rockn´roll’, clássico do Velvet Underground. A abertura do disco era justamente com “Cherry bomb”, a única que teve alguma repercussão na época e até hoje a canção mais conhecida e comentada da banda. Um riff marcante dá o tom para Cherrie detonar nos vocais de forma provocante e sensual: “Olá papai!/Olá mamãe!/Eu sou a sua menininha doce e explosiva/Olá mundo!/ Sou sua garota selvagem/Eu sou sua menininha doce e explosiva”.

Jett dava sinais do talento para composição que iria aflorar em sua carreira solo, escrevendo sobre um mundo de sexo, drogas e marginalidade. Garotas rebeldes que desafiavam o status quo, queriam se divertir e não tinham medo de se expor: esse era o recado da banda para o mundo.

No hino delinquente “Is it day or night?”, Currie grita e geme com intensidade arrebatadora, numa versão feminina do estilo exagerado e pervertido do hard rock setentista. Jett faz o vocal principal de “You drive me wild”, outra bombástica declaração de intenções com toneladas de energia, luxúria e guitarras massivas. Lita brilha no solo, dando uma amostra da guitar hero virtuosa que iria se tornar num futuro próximo.

A deliciosa “Secrets” é mais um show de Currie, especialmente quando ela sussurra: “Shhh, alguém está vindo/Shhh, fique quieto/Se formos pegos/Somente negue tudo”.

“Dead end justice” é uma odisséia de transgressão em duas partes, com mais de sete minutos de duração. Currie e Jett se alternam nos vocais. A primeira parte é levada em ritmo veloz e vigoroso, bem em sintonia com os versos de abertura: “Sou uma loira atraente e me visto bem/Sua mãe te diz que você vai para o inferno/Sou um doce de dezesseis anos e uma rainha rebelde/Eu pareço realmente gostosa no meu jeans azul apertado”. A narrativa nos apresenta uma viagem pelo submundo, com drogas, assaltos e vida nas ruas.

Após um solo extasiante, a música para ao som de gritos. A segunda metade é conduzida por percussão em ritmo militar e um diálogo delicioso entre as duas prisoneiras: “Atrás das grades, está uma estrela/ Que nunca teve uma chance… Atrás da cerca, não há defesa/ Somente assassinato, estupro e suborno”. A abordagem crítica sobre as leis e a justiça pode parecer ingênua, mas é apresentada de forma tão confiante e divertida que se torna irresistível.

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Em suma, o disco de estréia do grupo pode não ser revolucionário, mas continha todos os ingredientes para se tornar um sucesso na época. Além disso, uma banda de hard rock inteiramente feminina era uma grande novidade e elas fizeram amizades com a emergente cena punk e abriram shows para várias bandas que estavam na crista da onda, como os Ramones. No entanto, o que aconteceu foi surpreendente. O grupo foi solenemente ignorado nos EUA, mesmo após o lançamento do segundo álbum (Queens of noise) no início de 1977.

Na Europa, o desempenho foi um pouco melhor, mas foi no Japão o único mercado em que explodiram. Fizeram uma turnê por lá no verão de 1977 e foram recebidas com histeria e paixão, fazendo shows lotados e participando de programas de televisão.

Os registros dessa turnê são incríveis, e constituem grande parte do pequeno material audiovisual disponível sobre a banda. É incrível ver a presença de palco de cinco adolescentes na frente de tanta gente. A harmonia espontânea e de certa forma inocente contrasta com a sexualidade de Currie, vestida somente de lingerie, o estilo masculinizado e posudo de Jett e a seriedade de Jackie. Somente Lita ainda transmite um ar infantil – as outras parecem muito mais velhas e maduras do que realmente eram.

A banda começou a se dissolver ainda em 1977. Fox deixou o grupo ainda no Japão, acusando Fowley de estupro. Currie saiu logo depois, após desavenças com Ford, e Jett assumiu os vocais para os derradeiros dois discos, gravados de forma rápida em 1977 e 1978. À essa altura, Fowley já tinha abandonado a banda após ser questionado sobre pagamentos e falhas no gerenciamento da carreira delas. Discordâncias entre Jett e Ford acerca do estilo a ser seguido pela banda – a primeira estava apaixonada pelo punk, enquanto Ford queria manter uma pegada hard rock/heavy metal – foram o golpe final e tudo acabou no início de 1979.

Jett iniciou logo em seguida uma bem-sucedida carreira solo, e se tornou uma estrela. Ford também conseguiu se estabelecer como uma das guitarristas mais talentosas e virtuosas do rock, embora seus discos solo não tenham tido tanto apreço por parte da crítica. Currie não teve tanta sorte e sofreu com o vício em drogas. Ela formou um dueto com a irmã logo após a dissolução das Runaways e ainda está na ativa como cantora.

Existem diversas conjecturas sobre o fracasso das Runaways. O estilo manipulativo de Fowley foi apontado por muitos como abusivo e explorador, além de ter passado a imagem de uma banda pré-fabricada.

O fato de cinco garotas adolescentes cantarem sobre temas do submundo sem terem provavelmente vivenciado aquelas experiências também foi apontado como um grande problema. Mas o que parece ter sido decisivo foi a cultura machista da indústria, da mídia e até do público, que aparentemente não estavam preparados para um grupo de mulheres jovens, rebeldes e cheias de autoconfiança tocando rock pesado e se divertindo. Somente os japoneses foram capazes de captar a autenticidade e o simbolismo envolvidos.

Nesse sentido, a emblemática “I wanna be where the boys are” serve como uma síntese. Elas só queriam “estar onde os garotos estão, lutar como os garotos lutam, amar como os garotos amam”. Será que é pedir muito?

Esse texto foi originalmente publicado no meu livro “Rock feminino”, que trás resenhas de grandes álbuns de rock feitos por mulheres. Disponível para compra em:

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Daniel Rezende

Daniel Carvalho de Rezende é professor da área de Comportamento do Consumidor na Universidade Federal de Lavras (Minas Gerais). Desenvolve pesquisas sobre consumo cultural no âmbito dos cursos de mestrado e doutorado em administração. Entre os artigos científicos que já publicou sobre o tema, destacam-se: “As expressões do girl power na série Game of thrones”, “Consumo e distinção social no campo cultural da música: um estudo em Minas Gerais” e “'Pra nós, todo o amor do mundo': formação de identidade e consumo musical dos fãs da banda Los Hermanos”. Apaixonado por rock, já escreveu dois livros que abordam essa temática: Rock alternativo: 50 álbuns essenciais, publicado em 2018, e Rock Feminino, lançado em 2019.

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