Carne Doce, a grande banda brasileira da última década?

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Já há algum tempo, Goiânia tem sido a meca do rock alternativo brasileiro. Impulsionada pelo sucesso do Boogarins, a cena goiana não se cansa de revelar bandas: Brvnks, Black Drawin Chalks, Hellbenders, etc.

Carne Doce é a banda goiana que mais me atrai no momento. Misturando MPB, psicodelia e um groove contagiante, o quinteto liderado pela carismática vocalista Salma Jô vem crescendo vigorosamente e já consegue uma projeção nacional (e até internacional) muito boa. Grande parte desse sucesso se deve às letras marcantes de Salma, que oscilam entre o político e o confessional, entre o contemplativo e o visceral, e contam com uma melancolia onipresente como tempero fundamental. Os tons lisérgicos e atmosféricos são garantidos pelo suingue das linhas de baixo, pela bateria compassada e por guitarras e sintetizadores precisos. A produção é limpa e minimalista. O contralto de Salma parece resignado, mas pode explodir de raiva a qualquer momento, especialmente em canções de temática feminista. O grupo cresce muito nas apresentações ao vivo, entregando performances incendiárias e marcantes.

salma jô

O primeiro disco, Carne Doce, de 2014, já dava sinais de que uma banda fora dos padrões estava surgindo. Destaque para as temáticas bucólicas de “Sertão urbano” e “Amigos dos bichos” e para os arranjos precisos e envolventes.

Com Princesa, de 2016, as previsões se confirmaram. “Cetapensâno” abre os trabalhos e brinca com a regionalidade por meio do sotaque carregado do interior: “Cê tá bestâno pra cima de mim/ Vai catá coquin/ Cê besta, sô!”. “O Pai” chega a ser assustadora, um lamento dolorido sobre uma relação típica da sociedade opressora patriarcal: “Até hoje o seu não/ Até hoje o seu sermão/ Até hoje eu espero a sua benção”. A histeria provocante de “Falo” é outro ponto alto. As mudanças rítmicas e as guitarras cheias de efeito acompanham a narradora enquanto ela reflete sobre um relacionamento abusivo, em que a culpa recai sempre sobre a mulher: “Acho que tô naqueles dias…”. A explosão final é assustadora, despejada com raiva e surpreendente lucidez: “Que é por isso que eu sou histérica/ Eu não sou histérica/ Eu só tô histérica!”.

Olha que beleza essa versão ao vivo de “Falo”:

Outro destaque é “Artemísia”, um manifesto sobre o direito da mulher em decidir sobre o próprio corpo: “Não vai nascer/ Porque eu não quero/ Porque eu não quero e basta eu não querer”. E ainda há espaço para uma instigante faixa experimental de mais 10 minutos, que tem o sugestivo nome de “Carne lab”.

Aos poucos o grupo foi abandonando uma sonoridade com toques regionais e se direcionando para uma identidade mais brasileira.  O terceiro disco, Tônus (2018), é maduro e muito bem resolvido. A bossa triste de “Ossos” é conduzida por sussurros de tirar o fôlego. Em “Comida amarga”, reflexões contundentes sobre o envelhecimento e o desgaste num relacionamento: “Já não sou mais gostosa/ Você goza triste em mim.”. A inveja e a ditadura da beleza aparecem em “Tônus”, que impressiona pela carga de resignação: “Um corpo jovem/ Aquele tônus/ Aquele brilho…”. Em “Amor distrai (Durin)”, Salma encarna Rita Lee, ao abordar (sem neuroses e com muito bom humor) a busca da mulher pelo prazer.

carne doce tonus

Em 2019, consolidaram seu posto como um dos grandes do indie rock brazuca, com turnê no exterior e uma apresentação marcante no festival Lollapalooza. Isso me permite responder à questão colocada no título: Sim, Salma Jô e seus companheiros estão no topo do rock nacional com muito merecimento, pelo menos da humilde opinião desse que vos escreve.

Daniel Rezende

Daniel Carvalho de Rezende é professor da área de Comportamento do Consumidor na Universidade Federal de Lavras (Minas Gerais). Desenvolve pesquisas sobre consumo cultural no âmbito dos cursos de mestrado e doutorado em administração. Entre os artigos científicos que já publicou sobre o tema, destacam-se: “As expressões do girl power na série Game of thrones”, “Consumo e distinção social no campo cultural da música: um estudo em Minas Gerais” e “'Pra nós, todo o amor do mundo': formação de identidade e consumo musical dos fãs da banda Los Hermanos”. Apaixonado por rock, já escreveu dois livros que abordam essa temática: Rock alternativo: 50 álbuns essenciais, publicado em 2018, e Rock Feminino, lançado em 2019.

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