Álbuns clássicos: Liz Phair – Exile in Guyville (1993)

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Liz Phair é um exemplo de artista influenciada e formada pela cena alternativa dos anos 1980. Começou sua carreira gravando fitas cassete – que denominou de Girly Sound – de forma amadora em sua casa e divulgando pela cidade de Chicago, na época com uma cena alternativa emergente que rivalizava com Seattle (berço do grunge), e que deu origem a bandas como os Smashing Pumpkins. Suas músicas eram tão boas que os executivos da gravadora Matador assinaram um contrato com ela sem conhecê-la, tendo como base somente o que ouviram nas fitas.

Liz aprendeu guitarra por conta própria e tinha uma técnica rudimentar e peculiar. Não se baseava em dotes vocais para chamar a atenção, cantava de forma simples, monotônica e quase masculina, e concentrava-se em compor canções simples, fortes e melódicas. Adepta do estilo lo-fi (baixa fidelidade, em português), desprezava manipulações de estúdio e valorizava um som cru, despojado e caseiro. E como cereja do bolo tinha uma enorme capacidade para escrever letras polêmicas, redentoras, libertárias e cheias de atitude feminista.

Seu primeiro disco, Exile in Guyville, combinava todos esses ingredientes de forma perfeita. Escrito como uma resposta ao clássico Exile on Main Street, dos Rolling Stones, também era um álbum duplo e com as mesmas 18 canções. E essa resposta era um manifesto contra o que os Stones representavam: a dominação masculina.

O impacto do disco já começa pela capa, com Liz com parte dos seios à mostra e fazendo uma careta. E o conteúdo que se segue apresenta uma coesão e uma qualidade de composição impressionante para um disco de estréia. Phair certa vez afirmou que só via sentido em dizer algo se ela estivesse incerta sobre a reação das pessoas a respeito daquilo, e ela se tornou especialista nesse tipo de provocação.

exile in guyville

A impressionante faixa de abertura, “6′1″, é um arrebatador blues-rock ao estilo clássico, e a letra ousada já mostra que Liz não está de brincadeira. “Help me Mary” tem uma melodia deliciosa e é um apelo por ajuda (seria para Maria, mãe de Jesus?) de quem enfrenta uma relação conflituosa com amigos (homens) com os quais tem que conviver.

Faixas como “Glory” e “Gunshy” trazem somente Phair e sua guitarra, com efeitos oníricos. A primeira usa vozes sobrepostas com grande efeito emocional e aborda sexo oral, enquanto a segunda critica as pessoas que se acomodam em suas vidas rotineiras e sem sentido.

O single “Never said” é uma infectante canção pop em que o eu lírico refuta veementemente ter dito algo, provavelmente algum segredo que deveria se manter escondido.“Canary”, somente ao piano, e “Girls! Girls! Girls!”, em que Phair mostra seu estilo peculiar na guitarra, são pérolas do estilo primitivo e amador do disco, e em ambas pode se ouvir vozes ao fundo do mix, como numa gravação caseira.

“Divorce song”, por sua vez, mostra o talento de Phair como contadora de histórias, e usa uma viagem de um casal num carro como metáfora para o próprio relacionamento e suas discussões, brigas e argumentos bobos. O desenrolar de tensão na conversa entre eles acaba culminando num apelo para que o parceiro respire fundo e conte até 10, pois talvez fique tudo certo. Mas o que parece mesmo é que a separação será o final inevitável, como o próprio título da música revela.

Na polêmica “Fuck and run”, os marcantes acordes ao estilo R.E.M. carregam uma letra inspirada sobre relacionamentos e mostram a narradora buscando uma relação séria (“Eu quero um namorado”), mas conseguindo somente casos passageiros e baseados em sexo. Mas ela não se sente usada pelos homens, ela também se diverte. Os versos de abertura são brilhantes: “Acordei alarmada/Não sabia onde estava num primeiro momento/Só sabia que havia acordado em seus braços/E quase imediatamente me senti arrependida/ Pois não pensei que isso iria acontecer de novo.” A fragilidade  demonstrada por Phair é também tratada como liberdade, ao não se conformar com papéis femininos tradicionais e pré-estabelecidos.

liz phair pitchfork

“Flower” é cheia de efeitos, experimental e combina vozes agudas e graves ao estilo de uma canção de ninar. A letra trata diretamente de tesão, sexo oral e desejo por um homem como objeto. Não soa apelativa, pelo contrário, é libertária e mostra que as mulheres também buscam prazer carnal e podem cantar sobre isso.

Outro destaque no quesito “contadora de histórias” é “Stratford-on-guy”, que narra uma viagem de avião e tudo que passa na cabeça em situações como essa, como se imaginar num filme ou num videoclipe de sua banda favorita. O estilo de guitarra serpenteante e atmosférico do álbum, que tem seu ponto alto na sensacional “Mesmerizing”, influenciou artistas diversos da cena indie, como a “discípula” Lindsey Jordan, da banda Snail Mail.

“Strange loop”, que fecha o disco, trás duas guitarras que duelam e explodem num final caótico, simbolizando muito bem a montanha-russa de sentimentos expressados por Phair ao longo do álbum.

A recepção de parte da crítica foi entusiasmada, e Phair se tornou das grandes vozes do rock alternativo, influenciando artistas como Cat Power e Fiona Apple. Infelizmente sua carreira não decolou como planejado: ela colecionou fracassos de crítica e obteve vendas apenas moderadas nos álbuns subsequentes. No geral, nunca conseguiu chegar nem perto da relevância do álbum de estréia. Além disso, a cena indie machista de Chicago (a tal “Guyville” do título do álbum) a rejeitou, e ela teve que enfrentar tudo isso para continuar mostrando seu talento e conseguir manter uma base de fãs fiéis. Sua perseverança e atitude são referências para garotas que querem encontrar seu espaço e se deparam com indústria/mídia/cena musicais perversamente sexistas.

Esse texto foi originalmente publicado no meu livro “Rock feminino”, que trás resenhas de grandes álbuns de rock feitos por mulheres. Disponível para compra em:

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Daniel Rezende

Daniel Carvalho de Rezende é professor da área de Comportamento do Consumidor na Universidade Federal de Lavras (Minas Gerais). Desenvolve pesquisas sobre consumo cultural no âmbito dos cursos de mestrado e doutorado em administração. Entre os artigos científicos que já publicou sobre o tema, destacam-se: “As expressões do girl power na série Game of thrones”, “Consumo e distinção social no campo cultural da música: um estudo em Minas Gerais” e “'Pra nós, todo o amor do mundo': formação de identidade e consumo musical dos fãs da banda Los Hermanos”. Apaixonado por rock, já escreveu dois livros que abordam essa temática: Rock alternativo: 50 álbuns essenciais, publicado em 2018, e Rock Feminino, lançado em 2019.

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