Poly Styrene: a pequena visionária do punk britânico

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Se Patti Smith foi a “madrinha do punk”, Poly Styrene (nome artístico de Marion Joan Elliott-Said) merece o título de artista feminina mais relevante do auge do movimento punk.

Em 1976, a cantora de 19 anos formou a banda X-Ray Spex, maravilhada com o que tinha visto num show do Sex Pistols. A banda era composta ainda pelo guitarrista Jak Airport, pelo baixista Paul Dean, pelo baterista Paul Hurding e pela ainda adolescente Lora Logic (nome artístico de Susan Whitby), no saxofone. O grupo se distinguia pelos vocais poderosos e vulcânicos de Poly, suas letras marcantes e pelo saxofone de Lora – um instrumento antirock por excelência, que era usado de forma discordante e com efeitos surpreendentes.

Com esse line-up, a banda começou a fazer shows na emergente cena punk londrina. Em 1977, gravaram um dos grandes singles do punk, “Oh bondage up yours”, com seu famoso verso de abertura: “Algumas pessoas pensam que pequenas garotas devem ser vistas e não ouvidas/ Mas eu acho que, ah sujeição! Vá se f…”. Lora Logic saiu logo a seguir, e foi substituída por Rudi Thompson.

Em 1978, a banda conseguiu gravar o primeiro disco, Germfree adolescents. “Oh bondage up yours” não foi incluída na versão original, sendo acrescentada como parte do álbum somente no lançamento em CD na década de 1990.

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Germfree adolescents é um soco no estômago. Um dos grandes álbuns não somente do punk, mas da década de 1970, ele tem um vigor e uma coerência impressionantes. Segue a cartilha do punk básico, mas consegue ir além com trechos de guitarra um pouco mais elaborados, uso eventual de sintetizadores e, principalmente, pelo saxofone onipresente de Rudi, que leva melodias, contrapõe-se às frases de guitarra e oferece minisolos imperfeitos.

No campo temático, Poly Styrene tinha uma predileção por escrever críticas à sociedade do consumo. O próprio nome artístico dela (em português, poliestireno) se refere ao material utilizado para se fazer produtos descartáveis. Poly era bem morena, com linhagem africana por parte de pai e escocesa por parte de mãe, e essa diversidade cultural lhe conferiu uma mentalidade aberta para enxergar os danos causados por uma sociedade excessivamente materialista e sanitizada. Ela viveu fora de casa dos 15 aos 17 anos e desenvolveu preferência por uma vida simples no campo, sem luxo e com ideais ecológicos.

O ataque ao capitalismo começa logo na abertura, “Art-I-Ficial”, que emula os Sex Pistols e mostra todo o domínio de Poly na arte de cravar uma estaca moral de forma inteligente: “Artificial!/Sei que sou superficial/Mas não me culpe/Eu fui criada com eletrodomésticos/Numa sociedade de consumo”.

Outro destaque é a genial “The Day the world turned Day-glo”, que prevê um futuro com tudo artificial e padronizado, em que materiais sintéticos recriam e se misturam com elementos naturais: estrada acrílica, carro de polipropileno, bolo de borracha, árvore de seda artificial.

Em ritmo frenético, “Plastic bag” oscila entre passagens lentas e trechos alucinados, e trás uma das mais brilhantes metáforas do consumismo desenfreado: “Minha mente é uma sacola plástica/Que corresponde a todas essas propagandas/Ela suga todo o lixo…”.

As críticas ao consumismo eram freqüentes no punk rock – com destaque para “Lost in the supermarket” (The Clash) e “Damaged goods” (Gang of Four). No entanto, ninguém ousou fazer um álbum quase inteiro sobre o tema, agregando ainda questões emergentes na época, como os impactos ambientais.

 “I can´t do anything”, por sua vez, é um poço de negativismo (“Eu não consigo escrever/ Eu não consigo cantar/Eu não consigo ler/Eu não consigo fazer nada/Eu não consigo soletrar/Eu não consigo nem ir para o inferno”), e toca na ferida da violência contra a mulher: “Freddie tentou me estrangular…mas eu acertei ele de volta com meu rato de estimação”. O senso de humor corrosivo não afeta em nada a capacidade de emoldurar uma mensagem, que fica ainda mais viva com a melodia pegajosa e os vocais debochados.

 “Germfree adolescents”, por sua vez, bebe na fonte do reggae, contando com uma linha de baixo proeminente e um sintetizador ao estilo do clássico do hard rock “Baba O´Riley” (The Who). Poly esculhamba os relacionamentos superficiais e as fobias do mundo urbano: “Sei que você é asséptico/Seu desodorante cheira bem/Gostaria de te conhecer/Mas você está congelado como o gelo”.

A crise de identidade do mundo pós-moderno raramente foi cantada com tanta propriedade quanto em “Identity”. A falta de referências sólidas e o massacre da mídia se refletem no refrão: “Quando você olha no espelho, você enxerga você mesmo?/Você se vê na tela da TV?/Você se vê na revista?/Quando você se vê, isso te faz gritar?”

Em 1979, Poly decidiu pôr fim ao grupo. Ela era hiperativa e estava desgastada com as turnês. Entrou para o movimento Hare krishna em busca dos princípios de vida em que acreditava.

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Na década de 1990, o grupo se reuniu para shows eventuais e chegaram a gravar um disco, Conscious consumer, que teve pouca repercussão. A banda ainda se reuniria em 2008 para um show em que tocaram Germfree adolescents quase na totalidade. Poly morreu em 2011, devido a complicações de um câncer de mama. O X-Ray Spex cravou seu lugar entre os grandes da era original do punk, e Poly Styrene foi a pequena gigante do punk feminino britânico, liderando uma seleção de peso com nomes do calibre de The Slits, The Raincoats e Gaye Advert (The Adverts).

É de se pensar o que Poly pensaria da sociedade atual, com as redes sociais se sobressaindo às relações pessoais, as múltiplas formas de identidade virtual, as ansiedades que decorrem do uso excessivo de smartphones, o consumo desenfreado de bens baratos e descartáveis produzidos por mão-de-obra explorada e a ascensão ao poder de governantes intolerantes e que diminuem a importância da ecologia na agenda política. A verdade é que o espírito visionário de Poly anteviu essas conseqüências daninhas há quase 40 anos atrás, e por isso suas músicas continuam atuais e relevantes.

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Daniel Rezende

Daniel Carvalho de Rezende é professor da área de Comportamento do Consumidor na Universidade Federal de Lavras (Minas Gerais). Desenvolve pesquisas sobre consumo cultural no âmbito dos cursos de mestrado e doutorado em administração. Entre os artigos científicos que já publicou sobre o tema, destacam-se: “As expressões do girl power na série Game of thrones”, “Consumo e distinção social no campo cultural da música: um estudo em Minas Gerais” e “'Pra nós, todo o amor do mundo': formação de identidade e consumo musical dos fãs da banda Los Hermanos”. Apaixonado por rock, já escreveu dois livros que abordam essa temática: Rock alternativo: 50 álbuns essenciais, publicado em 2018, e Rock Feminino, lançado em 2019.

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