Porridge Radio e o renascimento do rock britânico

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Dizem que os britânicos costumam ser ruins no que inventam (exemplo: futebol), e muito bons no que outros inventaram. Um bom exemplo é o rock, gestado nos EUA e apropriado brilhantemente por eles. Tudo começou com a invasão britânica nos anos 1960, com grupos como Beatles, Rolling Stones, Kinks e The Who revolucionando a música. Na década de 1970, quatro subgêneros foram inventados e popularizados pelos britânicos: heavy metal (Black Sabbath, Iron Maiden), hard rock (Led Zeppelin, Queen), glam rock (David Bowie, T-Rex) e rock progressivo (King Crimson, Pink Floyd). Na segunda metade da década de 1970, os ingleses se espelharam no punk novaiorquino e deslocaram o epicentro do “faça você mesmo” e do retorno ao rock primal para as ilhas da rainha. Sex Pistols, The Clash, X-Ray Spex, The Slits e muitas outras bandas disseminaram a estética punk, e, no final da década, o movimento se metamorfoseou no soturno, artístico e experimental pós-punk de Joy Division, The Cure, Gang of Four, Siouxsie and the Banshees e The Fall.

Na década seguinte, foi a vez das gravadoras independentes e do chamado indie rock, seja na mistura de rock e eletrônica (New Order, Depeche Mode), na ênfase em guitarras melódicas e retrô (The Smiths, Stone Roses) ou num caldeirão de barulho e distorção (Jesus and Mary Chain, My Bloody Valentine). Os anos 1990 foram marcados por uma reação nacionalista ao grunge americano, batizada de Britpop (Blur, Oasis, Pulp, The Verve), e por um art rock brilhante e idiossincrático (Radiohead, PJ Harvey).

Nos anos 2000, o pós-punk revival foi dominante, com o sucesso de Arctic Monkeys, Franz Ferdinand e The Libertines. No entanto, no final da década o cenário começou a deteriorar. A ascensão de outros gêneros levou a uma entressafra nunca antes experimentada nas ilhas geladas e chuvosas. Esse período nebuloso dominou quase toda a década de 2010, e muita gente duvidava da capacidade do rock britânico se rejuvenescer e surpreender de novo. No entanto, os últimos anos mostram que podemos sonhar de novo. Bandas inovadoras e com energia de sobra estão revolucionando o rock inglês. Elas podem não ter a popularidade histórica que seus antecessores obtiveram, mas dão a esperança de que uma cena nova e relevante está sendo construída. Alguns nomes já se destacam: IDLES, Shame, Fontaines DC (da vizinha Irlanda) e Black Midi.

Em 2020, o grande disco de rock britânico até o momento é de uma banda de Brighton (sul da ilha) chamada Porridge Radio. Liderado pela carismática e passional Dana Margolin, o grupo bebe na fonte do rock dos anos 1990 e trás uma abordagem cheia de alternâncias e explosões sonoras, levada pelas letras simples e contundentes de Dana – com passagens repetidas à exaustão, como mantras enlouquecidos. Every bad é o segundo disco deles e apresenta uma clara evolução na sonoridade, com arranjos bem delineados e surpreendentes.

every bad

A bombástica música de abertura, “Born confused”, começa com “Estou morrendo de tédio” e se estende ao final de forma catártica, revelando o quão desorientada Margolin se sente: “Obrigada por me deixar, obrigada por me fazer feliz”. Envolta em sofrimento e angústia, a abordagem confessional de Margolin funciona como um exorcismo e exalta o poder da arte para enfrentar nossos fantasmas (tanto os do artista quanto os do espectador). Para os que reclamam de que é depressivo, mando essa citação do mestre Thom Yorke: “você sabe que estamos com problemas quando pessoas não querem ouvir música triste mais… elas estão se desligando.”

“Lilac”, outro destaque, parece auto- ajuda (“Eu não quero ficar amarga/ Eu quero que a gente melhore/ Quero que a gente seja mais gentil com nós mesmos e um com o outro”), mas com a repetição o tom otimista ganha contornos paranoicos. A temática lírica do disco ainda passa pela busca por segurança, autoaceitação, conflitos com a sexualidade, e vários outros assuntos de interesse quase universal, ainda mais nesses dias carregados de ansiedade.

dana margolin

Mesmo com todas essas credenciais, parece improvável que o Porridge Radio se torne uma banda grande, tanto por causa da falta de popularidade do rock entre os jovens quanto pelo próprio estilo fatalista adotado por eles. O mais provável é que se tornem cultuados por um nicho, com fãs ardorosos. De qualquer maneira, é bom ver novamente um pouco de pretensão midiática típica do rock inglês (Dana já afirmou que elas são a melhor banda do mundo) e o reconhecimento da crítica (acabaram de ser indicados para álbum britânico do ano pelo prestigioso Mercury Prize). Cabe destacar que essa nova cena não se apresenta como uma volta ao passado com ares nostálgicos, mas sim como um novo e promissor capítulo da história vigorosa do rock Made in Britain. Let´s wait and see!

Daniel Rezende

Daniel Carvalho de Rezende é professor da área de Comportamento do Consumidor na Universidade Federal de Lavras (Minas Gerais). Desenvolve pesquisas sobre consumo cultural no âmbito dos cursos de mestrado e doutorado em administração. Entre os artigos científicos que já publicou sobre o tema, destacam-se: “As expressões do girl power na série Game of thrones”, “Consumo e distinção social no campo cultural da música: um estudo em Minas Gerais” e “'Pra nós, todo o amor do mundo': formação de identidade e consumo musical dos fãs da banda Los Hermanos”. Apaixonado por rock, já escreveu dois livros que abordam essa temática: Rock alternativo: 50 álbuns essenciais, publicado em 2018, e Rock Feminino, lançado em 2019.

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